A Propósito de um Manifesto Sururu - Dirceu Lindoso

1.   Uma Pedra no Caminho 

       O Manifesto Sururu, escrito por Edson Bezerra, apareceu de repente num jornal, e foi uma pedrada na consciência alagoana. Depois dos manifestos de Oswald de Andrade, sinceramente eu havia perdido o gosto de ler manifestos culturais. Pensava erroneamente que a época dos manifestos culturais havia passado, era um fenômeno que surgira com os encontros e desencontros da Semana da Arte Moderna, que abalou toda a cultura nacional. Pensava, outra vez erroneamente, que era um fenômeno paulistano, que passara com os esquecimentos do que fora a Semana da Arte Moderna, a criadora semana que acabara com a frescura das rimas em poesia, e uns poucos poetas importantes e uma multidão de poetas medíocres. Tão ruim foi a repercussão dessa semana histórica na breve cultura alagoana, que eu, nascido nas fronteiras norte-provinciais, imaginara que o alagoano não soubera o que foi então o que fora criado pela Semana da Arte Moderna paulistana. E no meio das confusões, lá em São Paulo surgira um paulista ótimo poeta sem rima e eminente personalidade cultural, que teve a grandeza de escrever esse admirável Macunaíma, uma novela épico-nacional que os críticos, sem referências, gastaram uns vinte anos para entender: Mário de Andrade.

       Pois andava eu exilado de manifestos, quando deparei com um que tinha como matéria uma cultura especial das lagunas de Maceió: a cultura do sururu. Sabe-se lá se o Brasil todo sabe o que seja a cultura sururu, um fenômeno que se pensa ser apenas de Maceió? É, como entendo, que a área cultural onde ocorre a cultura sururu, se inscreve na área geográfica das duas lagunas culturalmente gêmeas que cercam a grande Maceió. Ou para ser mais preciso: ao norte, chega à embocadura do Mundaú, quando ele sai na laguna homônima, e que, para o sul, ultrapassa a velha e colonial Santa Maria Madalena da Alagoa do Sul e chega ao Pilar. Essa a área, ao meu ver, onde a cultura lagunar do sururu aparece como uma realidade social terrível pela miséria e pobreza e que a um tempo encanta pela beleza da natureza dominada pelas águas de ambas as lagunas e pelas ilhas que nelas surgiram.

       Essas lagunas não fizeram só de Maceió um paraíso lagunar, semeado de ilhas verdes e lacônicas, mas provocaram a entrada de Maceió e seu belo istmo de restinga de areias secas na literatura alagoana, com um romance filho primogênito da área cultural sururu, o Calunga, de Jorge de Lima; o mais belo livro de geografia lagunar, o Canais e Lagoas de  Octavio Brandão; os poemas lagunares de Lêdo Ivo e agora, inesperadamente, um manifesto também lagunar, com pretensões mais amplas para outras áreas de cultura, como o Manifesto Sururu de Edson Bezerra.

      Que é o Manifesto Sururu, de Edson Bezerra?  Quais as razões de sua importância? Ele, a meu ver, tanto diz como provoca. Será que a razão de um manifesto cultural é dizer coisas que ninguém disse, ou disse e ninguém notou? Ou diz para provocar?  O modelo de manifesto que recebemos de Oswald de Andrade tanto diz como provoca. O manifesto é um gênero cultural que quer dizer, mas, por outro lado, quer provocar. Sem a provocação cultural não há manifesto. A provocação é a natureza do manifesto, é que o faz sobreviver, e que o faz marcar uma época. Os ataques de Oswald de Andrade em seus manifestos não fazem desaparecer a poesia, mas a obrigatoriedade da rima em poesia. A poesia aparece então como uma coisa que pode ou não ter rima. Uma coisa que obrigatoriamente não faz a poesia. As provocações de Oswald de Andrade de natureza etnográfica não são apenas uma brincadeira com a história dos povos ágrafos, mas uma crítica à ideologia que então predominava nos nossos estudos históricos. O que quer Oswald de Andrade é que em nossa história o índio seja um índio, que o matriarcado primitivo não seja uma ofensa etnológica, mas um motivo de estudo e compreensão. Que a nudez dos povos primitivos não seja uma ofensa, mas um hábito de vida natural, que as índias nuas são tão bonitas como as mulheres civilizadas vestidas. Que existe uma ideologia do nu e uma ideologia do vestido. A índia nua é apenas uma mulher nua. E existe coisa mais bela que uma mulher nua? Uma mulher civilizada vestida é apenas uma mulher vestida. E existe coisa mais bela que uma mulher vestida?  As ideologias se criam na nudez da natureza e no vestimento da cultura. Porque a nudez completa na natureza não existe, porque a mulher nua se pinta e se encanta. Assim a vestimenta completa na cultura não existe, porque a mulher vestida tem sua técnica refinadíssima de revelar sua nudez. Entendi desse modo a antropologia de Oswald de Andrade. Do mesmo modo entendi dessa maneira a pintura de negras por Di Cavalcanti, para a qual se pode usar a frase bíblica de Salomão diante da rainha de Sabá: nigra, sed pulchra. Como, então, posso entender o Manifesto Sururu de Edson Bezerra?

      Um manifesto cultural não é coisa que passa. Que facilmente passa. Um manifesto, ainda que cultural, é um protesto, uma raiva social contida, e que, de repente, como uma árvore, brota seus ramos do profundo da terra, onde se pensava que árvore nenhuma existisse. Um manifesto é um repente, uma raiva que vem e se cristaliza. Uma raiva que ninguém esperava. E, e apesar de, ela havia. E se transforma em letras e razão, em texto de ditos, em teses de desespero, em ousadia. E um manifesto é uma bomba, um coquetel molotov, jogado propositadamente numa cultura. Foi o que fez este jovem professor universitário, jogando seu Manifesto Sururu na cara da estupidez alagoana. Abriu, sem pensar, o baú das circunstâncias, esse precioso baú das inconveniências.  E está se vendo agora com todos nós.  Pois a estupidez coletiva é um perigoso baú, onde cada um de nós tem uma parte da cabeça, ora por nossas desrazões, ora por nossos preconceitos. Mas agora o professor não se pode arrepender, porque no instante que o manifesto se estampa em um jornal diário,  ele se encontra  aberto a todas as malícias e comentários. O fato é que o manifesto existe, e dele podemos falar. Falar ou descompor. Mas eu prefiro falar. Pois faltava às Alagoas um Manifesto  Sururu.

      Agora o temos saído da astúcia de um intelectual citadino, que mexeu num ninho de maribondos, que ele não sabe o tamanho, mas que garanto que é maior que sua coragem de mocidade. Começa o manifesto com sua coragem maior, a de dedicar o Manifesto Sururu a três mulheres negras importantes: a mártir da cultura quilombola nas Alagoas, Tia Marcelina, morta na Quebra de 1912, e as que mantiveram a sobrevivência da cultura dos negros em nossa terra, suas parentas Tia Creusa e Maria Lúcia. Eu incluiria outra negra nessa dedicatória, essa extraordinária Mestra Ilda do côco, que não só sabe tomar caldinho de sururu na beira da lagoa Mundaú, mas conhece os segredos do folclore das Alagoas. Entre tantas negras célebres, entretanto, Tia Marcelina era a Coroa de Dada, que guardou com sacrifício da vida sua sabedoria de negra nagô. Era a rainha que veio dos segredos do Quilombo dos Palmares, e morreu espancada por uma tropa de pardos, que a serviço de uma ideologia de brancos, arrebentou os terreiros sagrados dos deuses africanos de Maceió. Foi um ataque terrível à cultura quilombola, mestiçada pelas etnias africanas, e guardada como crença e sabedoria. E a dedicatória se estende também ao antropólogo Sávio Almeida e a mim, um escritor.

       No começo o autor se defende, dizendo que o Manifesto Sururu, como tal, não quer apostar e nem pousar em outras imagens. Mas quem disse que é assim? Manifesto nenhum quer deixar de se espalhar sobre outras imagens. Aliás seu papel é esse: espalhar-se, derramar-se sobre outras imagens mais tradicionais e nem sempre justas, velhas imagens antigas carcomidas pelo preconceito. E começa logo evocando as imagens octavianas dos canais e lagoas, e das lagoas e rios, lembrando o que disse Octavio Brandão que são os canais e os rios que ligam Alagoas. Coisa que já sabiam os geógrafos nassauneanos que vieram à velha capitania de Pernambuco no século XVII, e a partir daí desenharam seus mapas: Marcgrave e Piso.

       E tanto o Manifesto Sururu quer espalhar-se que o autor o define como mistura e associação de moluscos, peixes, águas, negros, cafusos, morenos e de todas as mestiçagens possíveis das gentes alagoanas. E acrescenta no final de sua declaração: Manifesto do sururu: do vale do Mundaú para onde houver lagoa. Como não quer espalhar-se? Como não quer provocar? É o que mais quer. E ainda fala que o Manifesto Sururu se alegra com as tradições alimentadas pelos povos periféricos. E reivindica como imagem alagoana a imagem da Mestra Ilda do côco, de sua beleza de negra do Mundaú e de sua sabedoria folclórica de folguedos de negros. Reivindica a imagem alagoana do Major Bonifácio, que era branco, e exigia para si a área cultural de folclore que ia de Bebedouro aos Martírios. Um paralelograma foclórico de sabor florianista. E declara ainda que, no fundo somos gente-sururú, que traz nos olhos as imagens de todas as águas. O que inclui águas do mar, das lagoas, dos rios e olhos d’água. E pede que se dê para Tia Marcelina a adoração de uma Nossa Senhora dos Prazeres, padroeira da Maceió de brancos e de pardos com ideologia de brancos, que quebraram os terreiros e santuários dos negros de Maceió.

       Tia Marcelina morreu assassinada por uma polícia de pardos, alguns até ex-soldados da Guerra do Paraguai, mas não fugiu de seu péji, do altar de seus santos africanos, morreu gritando para os algozes: Vocês acabam com o meu corpo, mas não acabam com minha sabedoria, com minha idéia. Enquanto outros fugiram, Tia Marcelina ficou em seu péji, onde tudo foi quebrado, os altares e os símbolos sagrados de seu povo afro-brasileiro. Negra, morreu negra com seu povo negro. Tia Marcelina não é uma santa católica, não tem a brancura judaica de Nossa Senhora dos Prazeres, nem é padroeira de Maceió. Ela tem outra história onde os brancos entram como algozes. Tia Marcelina é rainha e sacerdotisa de seu povo negro quilombola, que lutou em Palmares até a morte ou a prisão, e que paira sobre a Maceió branca com sua coorte de deuses africanos. Ela não nasceu na Ásia, como Nossa Senhora dos Prazeres, mãe de um deus branco. Ela é filha do povo que veio de África ser escravo nos canaviais de nossos avós brancos, nossos avós que arrasaram Palmares dos quilombolas e das cercas reais, o Palmares de Zumbi e de Ganga Zumba. Ela descende dessa África onde primeiro o homem se humanizou. Pois Tia Marcelina não é dos prazeres, da alegria santa; Tia Marcelina é Marcelina das dores, do sofrimento humano da escravidão.

      Tia Marcelina não deve merecer altar, porque não é santa. Tia Marcelina é mulher que tem de sublime o humano. É a sacerdotisa fiel, a grande mãe-de-santo do mundo dos negros quilombolas, que trazia seu quilombo no coração. O coração era dedicado ao amor, às coisas sagradas, e trazia em sua cabeça a sabedoria do seu peji. Tinha a coragem das rainhas negras, das grandes sacerdotisas dos sagrados orixás. Ela sabia que em seu terreiro pisava terra quilombola, sagrada com sangue de negros e negras que morreram em defesa dos quilombos mocambeiros dos Palmares. Sabia que quando em seu terreiro soavam os tambores renascia sob seus pés a nação de Zumbi, que todo negro quilombola até hoje sonha, e que é maior que a vida.

        Tia Marcelina, ao contrário do que pede o Manifesto Sururu, encarna a negritude quilombola, que pode ser de três tipos: pela cor da pele brasílico-africana, como era Tia Marcelina; pela miscigenação, como muitos; pela morenidade e pela cultura negro-palmarina e quilombola como vários. Mas há quem pense que a cultura quilombola é uma cultura especial. E há cultura que não seja especial? A cultura é uma construção especial que se sobrepõe à natureza. Como dizem os mais esnobes, a cultura é, assim, um barato. Pode até ser. A miscigenação é uma mistura entre etnias; e a mestiçagem é uma mistura entre raças. Uma é um fato da cultura, e a outra é um fato da biologia. 

2. A Geografia do Manifesto Sururu
  
       Ninguém melhor que Octavio Brandão descreveu, em seu Canais e Lagoas, a geografia do polígono cultural da área do sururu. Calcula-se que ele percorreu cerca de 5.000 kms pela área lagunar do sururu: a cavalo, de canoa e a pé, anotando tudo o que via ou o que lhe contava a gente sururuzeira. Creio que foi assim. E ele tinha 19 anos, e anotou tudo: fauna, flora, acidentes geográficos e traços de cultura popular. Fez sua viagem filosófica em plena mocidade. E essa viagem o marcou para o resto da vida. Pois Octavio Brandão, que conheci quando veio do exílio europeu, foi sempre o homem que escreveu o Canais e Lagoas. E admiro sua tenacidade em levar longe um livro da mocidade, que ainda hoje encanta. Pois o melhor desse livro está em suas descrições da área geográfica dos canais e lagoas, definindo-a como área geográfica e cultural. Nessa área se situa o Manifesto Sururu de Edson Bezerra. É dessa geografia do Manifesto que vamos falar, para que se perceba a importância da área cultural do sururu como área de cultura. Octavio Brandão publicou seu livro em 14 de outubro de 1919 no Rio de Janeiro, mas gastou dois anos a escrevê-lo quando ainda vivia em Maceió. Dos seus 1.500 kms de viagem pelo mundo aquático das  lagunas Manguaba e Mundaú, 600 km fê-los a pé.

      É de Octavio Brandão a divisão ideológica que faz de alguns rios de Alagoas. O São Francisco de Borja, que os índios chamavam Opara, ele classifica como o rio da raça branca, e o Mandaú, que é rio que corre do sertão de Garanhuns e dá nome a lagoa do Norte, ele diz que é o rio dos negros quilombolas dos Palmares, sendo o Paraiba o rio dos índios, ou como diz a agulha de marear da raça indígena. Segundo Dias Cabral, Mundaú quer dizer rio onde se arma mundéu, rio onde há cilada. Esses dois rios – o Paraiba e o Mundaú são os rios principais que correm para as duas lagoas, sendo que a uma dá o nome . O Mundaú é um rio de águas variáveis, que no verão corre poucas águas barrentas, e com as chuvas do inverno tropical inunda as lezírias e pastos verdes. Por isso Octavio Brandão escreveu a respeito dessa variação de águas do Mundaú: Não é ...o rio de uma civilização morta, é a corrente de uma civilização  que vive. É um rio com uma horizontalidade de águas tranquilas, que corre pelo seu vale violentamente fecundo. E escreve sobre o Paraiba, que é seu rio do carinho, e que ele chama com afeto de meu rio luminoso, e que corre num leito  semeado de grandes blocos de pedra. E diz que é uma beleza, ver o meu rio devorando a terra, e que é um rio de desejos insaciáveis, dono de uma insaciabilidade de terra queimada pelo sol a beber vorazmente as águas dos primeiros caudais. E que a Terra se oferece ao rio como um fruto que quer ser colhido, ... como uma miragem que deseja ser imolada ao amor. E neste ponto seu texto vira poema de profunda ternura, um poema de amor profundo. Eis o texto posto em poema:

PARAIBA

Meu grande e luminoso rio
Pelos teus catolezais inquietos
Pela palidez brumal das neblinas
Pelas serranias circundantes
Repetindo-se como ritornelos
De argila ou de granizo
Pelos horizontes cinzentos e longínquos
Pela leveza de tuas águas
Pelo sono de tuas margens
Pela cionose de teus céus
E pela síncope de teus poentes
Pelos bois de graves perfis
Resignados a beberem tuas águas
Pela gravação de tuas colinas
Pelos teus mulungus quietos e extáticos
Pelos teus peraus sombrios e letais
Pelo rosal das rosas do meu sonho
E pelos braçais de inspirações da tua vida
Pela minha alma que é irmã da tua
Pela minha vida, pela minha arte
Que é o  meu farol
Pelo sol do meu pensamento
E pelo luar magoado do meu coração
- Glória a ti! Mil vezes glória!-
  
       Sunaúma é uma planta e é um rio. É uma planta gigante, uma bombacácea. A planta deu nome ao rio. Pois ao falar do rio, o que Octavio Brandão faz é defini-lo como poesia. E o ponho eu aqui em forma de poema:
  
O SUMAUMA

O Sumauma é o rio das patorronas e das agachadeiras
Aí, nos brejos, pelas alvoradas,
O jaburu-moleque com a sua voz sombria,
Solta o seu brumm! brumm! brumm!
Aí, pelo esplendor dos poentes
Quando um frêmito sutil
Atravessa a água quieta
Pelos mangais os socós tristes
Gritam o seu esquisito
E metálico: quiau!quiau!
Aí, na água dormente dos alagadiços um molusco
A lymnaea stagnalis
Timidamente emerge
Da sua concha espiralada
Sonda cuidadosamente o rio
Como quem sonha a vida
Ou interroga o destino
E não vendo coisa alguma
Adormece confiadamente
Enquanto lá fora
A vidraria luminosa da lagoa do Sul
Parece fervilhar sob os raios do Sol
Como um vasto mar magnífico
De mica negra.

       Octavio Brandão mistura deliciosamente poesia e ciência. E à isso aos 19 anos de idade, mal saído das calças curtas. Ama o que estuda. Sente o prazer e as dores do rio. Ama os antigos que sabem a história dos rios e canais, de como se forma a terra e se forma a água. De como nascem as plantas, de como parem as fêmeas o seu parir diferente. Ele diz coisas que admira: A lagoa do Sul é triste apenas no lado que banha a velha cidade de Alagoas. Talvez essa tristeza seja mais um reflexo da cidade antiga do que outra coisa. As cidades não têm culpa, as cidades apenas envelhecem. Não é isto que  o jovem Octavio de 19 anos quer dizer? A lagoa do Norte é diferente. Vive cheia de medusas, que o povo da ribeira chama langanhos. E chama as cebolas de heróis, elas que bóiam que nem odres aquáticos, aos bomboleios, numa viagem eterna da lagoa para o mar e do mar para a lagoa. E fala mais que os rios se enchem de hidras viridentes – este meio caminho entre a vida vegetativa e a vida animal. As bordas dos canais povoam-se de algas constituindo uma borra escura à qual os naturais chamam lodo baeta, e plena de siris azuis. Mas a Lagoa do Sul, diferentemente, tem apenas o mau colchão de capim salgado e as manchas do verdete como nódoas.

       E fala ainda de um dia de inverno na lagoa do Sul: ... madrugadas frígidas, o pavoroso martelar dos jaburus e o coro aéreo e gazil das agachadeiras, soando repentinamente, acordam a alma sonolenta da lagoa do Sul. Enquanto, contrariamente, pelos baixios marginais do Samauma, pelos mangais do riacho Novo, pelo beiral das casas do Barro Vermelho, dispostas ladeiras abaixos - a gente alada desata as suas gargantas. E cada vez Octavio Brandão no saber de sua mocidade fala do mundo da lagoa Manguaba: Tudo parece morto. Morta, a lagoa Morto, o espaço. Mortos, os areais desertos. Mortas, as águas paradas, estagnadas, dos pântanos. Morta , a velha cidade de Alagoas. Mortos, os engenhos pejados, parados. Mortos, os habitantes – parados na vida, na estagnação. Nas velhas igrejas da velha cidade de Alagoas, o responso dos sinos, como um cantochão arrastado e triste, vai soando:
         
           - Dão! ão-ão... Dão! ão-ão...

A cidade antiga recolhe-se em si mesma. Um silêncio infinito abraça as almas. Nem um hálito, nem um sopro, nem uma asa rasgando o espaço, nem uma voz cortando a soledade... esse dia de inverno, triste, tétrico.

       Faltou se pensar no Manifesto Sururu na tristeza de Octavio Brandão. Uma imensa tristeza social. O que é mais que Canais e Lagoas se não uma imensa tristeza, por no paraíso haver tantas misérias. O que Octavio Brandão sofreu em toda a sua vida – e eu o conheci em toda sua vida honesta já no fim – se não um homem carregando uma imensa tristeza, uma tristeza terrivelmente lagunar de não poder ter mudado o mundo. Estou me lembrando da velhinha, dona Lourença Maria da Silva, de quem Octavio Brandão, que a encontrou na praia da Jiboia, na ilha de Santa Rita, e que a considerava uma pessimista  que fazia ao mundo novo, como ela chamava o mundo em que vivia. Ela não acreditava no padre Cíçero de Juazeiro, nem que os mortos viessem visitar os vivos, de quem tanto gostava o escritor, e que considerava uma pessimista pela crítica que fazia ao mundo novo como ela chamava o mundo em que  vivia:

Ó mundo que foste mundo,
Ó mundo que já não és,
Ó mundo que estás virado
Da cabeça para os pés!
Será que no final da vida Octavio Brandão entendeu o que lhe queria dizer a velha Lourença da praia da Jiboia?

      Não quero especular sobre a tristeza de um grande homem, que Octavio Brandão foi. Nenhum grande homem suporta que se futuque sua tristeza. Principalmente quando se trata de uma tristeza que ele carregou toda uma vida. De uma tristeza que o fez viver e que o matou. Octavio Brandão é a grande consciência que temos em nossa cultura. Ele é o que abre o caminho principal. É o guia que diz qual é o caminho, e vai na frente caminhando. Como na canção do poeta Antônio Machado:

Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.

       Poucos falam da tristeza de Octávio Brandão. É como se ele estivesse, toda vida, a viver num paraíso. Mas o mundo lagunar onde nasceu, em Seriba, era como fosse apenas um jardim de flores. Flores lá havia, flores que ele primeiro viu em sua infância. Plantas de rara beleza lá havia, que ele viu e descreveu em sua viagem filosófica pelas lagunas que cercam Maceió. Seu trisavô paterno, José Gregório de Carvalho, e seu parente Luiz José de Carvalho, de apelido Macunica, derrubaram os mangues, e abriram a camboa, construindo o canal que se conheceu como Rego de José Gregório, e hoje se chama canal de Fora e também canal da  Seriba. Sua família paterna também fora de abridores de canais na região das lagunas maceioenses. Mas foi no Trapiche da Barra, num local bastante rústico, que o jovem Octávio Brandão conheceu o velho José Nicodemos Dias Cabral, parente do erudito Dias Cabral, e que era um velho marcado pela solidão. Um velho que vivia à beira da lagoa e que sofria de uma tristeza mansa. E que lhe chamou para mostrar uma triste capoeira como quem mostra uma filha cobiçada pelos que a querem devastar com o machado. Em julho de 1917 ainda havia no Trapiche da Barra quem amasse uma capoeira feita de cedros e mapigungas com razões de amor a uma filha. Uma capoeira a que o velho José Nicodemos chamava de matazinha. Pois essa tristeza de Octávio Brandão existiu, e que nascera entre canais e lagoas, e depois uniu-se a outras tristezas maiores. Uma tristeza que o acompanhou até sua morte, uma tristeza pois lagunar, dessa que só os que nascem e vivem  entre lagunas sentem. E Octávio Brandão pensava que a sorte do proletariado o livraria dessa maldição de ser triste numa terra alegre, com pássaros que cantam e plantas que florem. E em 13 de março de 1919, preso na velha cadeia de Maceió por professar idéias []libertárias – como ele dizia – escreveu o poema Na casa da infâmia, onde há versos como estes:

Estar preso! Que importa?! Pois a vida
Vale somente pela imolação,
Diante da ara grandiosa e dolorida
De um sonho universal, de uma ilusão.

É glorioso marchar para a cadeia
Por defender ideais em mil batalhas,
Por ter a alma revel de raios cheia,
Castigando os patifes e os canalhas.

Hoje sou como um réprobo maldito...
Mas tenho fé que um dia a alma da história,
Plena de luz, de vibrações, de glória,
Cantará minha dor, dirá meu grito!

Octavio Brandão morreu embebido nessa ilusão. Eu o visitei, antes dele morrer, em sua morada no meio das matas de Santa Tereza, no Rio de Janeiro, e me recebeu educadamente, sabia que eu vivera na Rússia, e me falou da Rússia com carinho. Uma vez, conversando com ele na Livraria José de Alencar, na Rua do Comércio, aqui em Maceió, na presença do meu amigo Hermann Baeta, ele me dissera seriamente: Não gosto de você, porque você é um jovem irônico. É que Octávio Brandão era um homem bondoso, mas sisudo. De uma forte seriedade. E eu ri quando ele me contou que, quando visitara a propriedade em que nascera, uma vaca do pasto o atacou, e ele correu para subir num cajueiro, mas os chifres da vaca pegaram-no no pé, e ele estava ali com o pé inchado e mancava. E eu ri muito quando ele me contou seu acidente nostálgico. Porque, em minha maldade juvenil, imaginei uma vaca proustiana chifrando os pés de Octávio Brandão.

       O episódio da vaca e a zanga de Octávio Brandão são coisas inesperadas na vida de um homem da sua grandeza, mas ele era intelectualmente vaidoso, tinha prazer nas coisas que fazia. E, às vezes, fazia-as bem. Os erros de Octávio Brandão vinham de uma certa ingenuidade na sua prática política. Ele era anarquista, mas fundado em Niterói em 1922, por Astrogildo Pereira e uma dúzia de anarquistas dissidentes, o Partido Comunista, Octavio Brandão se declarou logo um comunista de primeira hora. E o foi a vida inteira.  Brigou para ser comunista, principalmente com intelectuais, quando foi viver no Rio de Janeiro, então capital nacional. Quis ser comunista dirigente, e não deixaram. Traduziu o Manifesto Comunista de Marx e Engels para o português, sem poder assinar o nome de tradutor. Sofreu uma terrível perseguição. Humberto de Campos, um intelectual da época, o odiava e o perseguia pelos jornais. E para dificultar sua vida, sua teoria marxista e sua prática comunista nem sempre coincidiam. Nos anos 30 Octávio Brandão confrontou-se com o stalinismo, em que sempre viveu. E nele se agasalhou. Octávio não sabia fazer autocrítica – diziam. Não sei se é verdade. Sei que certas autocríticas eram uma coisa de quem não tinha coragem, e se uma coisa Octávio Brandão tinha era disposição de luta e coragem. Em 15 de junho de 1919, concluindo seu Canais e Lagoas, escreveu seu lema: Se atacado, lutarei. Apedrejado, lutarei. Se for vencido, lutarei!  Era, antes de tudo, um homem de coragem. E justamente uma pobre vaca do Seriba, quando Octávio Brandão curtia sua nostalgia de infância, veio pô-lo a correr, a tentar subir num cajueiro, a chifrar-lhe os pés e deixá-lo de pé engessado e manco. E minha ironia de alagoano explodiu. Vê-se que não sou um homem da área cultural lagunar.

3.   O Riso Faz Bem

       Não sou da área lagunar, e não o sendo, sou diferente. Daí a beleza, que é para mim, falar da cultura lagunar maceioense. Sou um homem das fronteiras do norte, não sou de ideologia caeté, e se se fala de índios, sou de ideologia pitiguar. Os pitiguar que meus antepassados mataram, e com as mulheres dos quais se casaram, os pitiguar que lutaram no Terço de Felipe Camarão, que expulsaram holandeses e flamengos de Porto Calvo e Recife, que falavam tupi como os caetés, mas não eram caetés. Por isso os pitiguar não aparecem no Manifesto Sururu. A raiva de Octávio Brandão me fez bem. Eu era diferente dele. Mas era, então, comunista como ele. E ele me ensinou que o mundo comunista era uma luta. E sua consciência de homem justo, que tomei por modelo, me fez um homem justo.  Octavio Brandão só sabia lutar. Viver para ele já era uma luta ferrenha. Seu trisavô José Gregório era um Carvalho, um quase caboclo, de Seriba, mas sua mãe tinha a lordeza branca das famílias penedenses. Era da ribeira do São Francisco, não o de Assis, mas o de Borja que lhe deu Américo Vespucci, que o descobriu. O grande rio, que o gramático e historiador sergipano João Ribeiro chamou de rio da unidade nacional. Os sergipanos são, às vezes, admiráveis.

      Pois, eu não sou caeté, nem em manifesto. Não sou da cepa dos que mitologicamente comeram o bispo. Sou, ao contrário, um ideólogo pitiguar. Comedor de camarão. Ideologia por ideologia, eu falo da minha. Não dizem que a mulher de Filipe Camarão era uma índia do Porto Calvo? Que ideólogo reivindicou o papel histórico dessa índia pitiguar? Que eu saiba, nenhum. Mas ela sendo a mulher de quem se acredita que foi, tem lá seu valor histórico. Não sou contra o Manifesto Sururu, de Édson Bezerra, muito pelo contrário. Alagoas precisava de um manifesto desse quilate, e que tem provocado boas coisas no nosso pacato espaço cultural. Mas um manifesto é um manifesto, provoca e é provocado. O diabo é que não nasci aqui, na beira das lagoas e comendo sururu. Lá no norte o que se comia o inverno inteiro era camarão-pitu e goiamum; e no verão os siris, os gorjais e as saúnas do lagamar, os grandes peixes do mar de fora. Porque os grandes peixes são universais. Os grandes peixes e as grandes idéias. Eu sou magistralmente pitiguar. As lagunas de Maceió são o universo caeté. As matas e rios do Maragogy (assim escrito com y) são o universo pitiguar. Nos manguezais do Maragogy não há sururu, há ostras. E ostra se come até em Paris. Nas lagunas maceioenses, ao contrário, há sururu. E sei que o sururu é um bicho complicado.  E tem nome científico em latim. Pois se chama cientificamente  Mitilus alagoenais. Mas popularmente é conhecido como sururu-de-alagoas. É da família dos mexilhões.  No meu tempo de rapaz, quando estudava no Liceu Alagoano, quando o sujeito complicava tudo era chamado cabeça de sururu. Nunca descobri a razão do apelido. Talvez porque o caldo de sururu tem fama de que é bom para a cabeça. Lá no Sul, sururu se chama bacucu, e não sei por quê.  O sururu deve ter o seu mistério. Não é um molusco qualquer. Tanto é que hoje destaca uma cultura. Esta que Edson Bezerra quer espalhar para toda Alagoas. E produziu o maior dos poetas neobarrocos do nosso tempo, Jorge de Lima, e o maior geógrafo lagunar alagoano, Octavio Brandão. Não sei se os negros quilombolas comiam sururu. Sei que lá nos mangues do norte alagoano não tem. O sururu é uma especialidade da cultura lagunar caeté. O sururu nas lagoas maceioenses faz toda uma geografia de expressão indígena caeté. Mas os caetés verdadeiros eram índios tupinambá, e se chamavam caaeté-açu. Ou melhor: tupinambá-caaetéaçu, tupinambá das matas grandes verdadeiras.

        Mas eu comecei dizendo que o riso faz bem.  Aprendi a rir com François Rabelais, que nos ensinou que rir é próprio do homem. Que o homem é o animal que rir. E sabe ri. Que no riso, mesmo irônico, às vezes reside a compreensão, a tolerância que se deve ter mesmo quando se discorda. Mas Octavio Brandão tinha uma educação política stalinista, queria a unanimidade do riso e a toda hora. Era impossível viver em concordância o tempo todo com Octavio Brandão. Para isto o sujeito tinha de ter uma resistência lagunar, uma proteção caeté. E sou um homem de alma pitiguar. Um homem das fronteiras do norte. Um homem que come camarão, e não tolera unanimidades. Minha avó materna, que era de origem galega, pois meu bisavô e meu tataravô maternos não falavam português, e só sabiam falar galego. Pois pois essa minha avó querida, que me ensinou a ler, só não gostava de comer sururu de capote porque não se podia comê-lo de faca e garfo. E eu dizia: - Minha avó, mas a senhora come caranguejo com as mãos, sem talher!  E ela meio que rindo:  Mass cangrerros hay em España! 

       Pois havia essa dificuldade de não se poder comer de faca e garfo o saboroso sururu de capote. E por isso minha avó não comia sururu. Mas quando vim ainda moço para Maceió, e aqui me casei, aprendi com minha empregada sururuzeira e mulata quase branca a comer com as mãos, chupando os dedos sujos de pirão mexido, o saboroso e único sururu de capote. Um prato que me conciliou com a vida. Quase que eu virava um ideólogo caeté. Aguentei-me e continuei um ideólogo pitiguara. E fiquei na diferença.

4.   Quem Ouviu Falar do Mulato Calabar?

       O Manifesto Sururu está preocupado com a visualização da imagem de Calabar na cultura alagoana. Mas essa visualização já existe. Creio que a visualização se formou depois da criação da capitania de Alagoas em 1817. É que nesta data Alagoas começou a procurar sua história, uma história que não fosse a de Pernambuco. E reviu todos seus possíveis heróis. E lá estava Zumbi, que era de Porto Calvo, mas era um herói negro que lutara contra as tropas luso-espanholas. E herói negro Pernambuco já tinha, e que combateu a colônia flamengo-holandesa e o Quilombo dos Palmares, que era Henrique Dias; e lá estava um soldado trânsfuga, que depois de lutar contra as tropas flamengo-holandesa passara para o lado da Holanda, e que Matias de Albuquerque mandara prender e executar com morte vil de torniquete porque o considerava um traidor: Calabar. E Calabar, com seu ato, estigmatizou a história da jovem capitania de Alagoas, que mal começava. E Pernambuco nos dava um traidor por herói, e que nos pesa hoje tanto, porque na época de Calabar o Brasil não existia como nação. E mesmo assim, sujeitos mau-intencionados nos deram um trânsfuga como herói. E aí entra a culpabilidade alagoana.

      Essa crença de um Calabar herói-trânsfuga  foi crescendo ao longo de nossa história. Os antecedentes para formar essa imagem já existiam, pois no começo da colonização a família Duarte Coelho acusou uma tribo errante da nação tupinambá de ter comido o bispo, que era um velho teólogo, nas areias da praia de Coruripe. E com essa acusação sem provas, os donos da capitania mandaram exterminar a tribo dos tipinambá-caaetéaçu, e todos os índios da ribeira do São Francisco, embora de diversas etnias, passaram para efeito do massacre à condição de índios caetés, esse fantasma que cruza a história de Alagoas. Os Duarte Coelho davam um genocídio como começo de nossa história. E depois da criação da capitania de Alagoas, mandaram-nos o fantasma de Calabar, ficando o Brasil com um traidor nacional, coisa que as outras nações não têm. E os caetés e Calabar são os fantasmas da nossa história. Daí é que surge o problema da culpabilidade da consciência alagoana. A consciência alagoana manchou-se de tantas culpas. E algumas dessas culpas históricas. Criou-se uma consciência alagoana culpada. E depois vieram casos realmente históricos das tropas alagoanas e paraibanas destruírem as revoluções pernambucanas. Alagoas tem uma consciência de culpas. Umas verdadeiras, e outras inventadas. E a classe dominante alagoana tem essas estórias como sua história.

Calabar foi mais um fantasma que nos chegou. E para alegria dessa classe dominante, o Manifesto Sururu diz que Calabar é nosso. Num manifesto cabe o que Deus quer e o que o Diabo criou. Mas Calabar nunca será um herói da cultura sururu. Zumbi, sim, Zumbi sonhou uma nação. O povo que Zumbi fundou está vivo, e se chama povo quilombola. Zumbi é o herói do povo quilombola, e está guardado no coração de todos os que descendem dos Palmares. Os Palmares não são apenas uns bosques de palmeiras. Os Palmares são bosques de palmeiras selvagens, mas palmeiras de um chão sagrado. Por quê ? Porque em Palmares nasceu um povo. Porque daqueles bosques saiu uma nação negra, que se espalhou por todo um chão brasilo-negro-indígeno-lusitano. Em Palmares a África se encontrou com o Brasil. Em Palmares o povo brasileiro se tornou mestiço. Essa beleza de ter criado o mulato. Foi em Palmares que os brancos lusitanos e flamengos se tornaram morenos. Que o nosso povo mestiço temperou sua alma. Não somos só brancos, só negros, somos morenos quando não na pele, no sangue. Não disse Gilberto Freyre que no Brasil todo branco tem uma gota de sangue de negro?  E Gilberto Freyre era um antropólogo branco, que nos advertiu que nossos negros chegaram aqui como escravos. Não eram simples viajantes que chegavam, eram nações inteiras de homens, mulheres e crianças que chegavam em estado de escravidão. E que eram nos portos do Novo Mundo vendidos em mercados de escravos. E nos portos de África ficavam os mercados exportadores de negros escravos. E se escrevia no cimo de seus portais: Porta do Não Volta Mais. Pierre Verger, o fotógrafo-etnógrafo, um dia me mostrou a foto de um desses portais. Tive vontade de chorar, mas me lembrei da lição de Hegel, o grande filósofo alemão – a contradição é o que leva para diante - e me confortou saber que desse ato de violência, desse não volta mais nasceu um povo no Novo Mundo, o povo dos mocambos palmarinos e dos mocambos de Paracatu de Minas: o povo nosso  mineiro-alagoano dos quilombolas. O povo dos quilombos baianos dos campos da Cachoeira e de Imbiara, que Domingos Jorge Velho arrasou em sua passagem pela Bahia. A história de Alagoas deve colocar a figura de Calabar dentro da razão histórica: foi um bravo e corajoso soldado-trânsfuga, e nada mais. Mas Zumbi foi o herói de um povo, um povo que queria virar nação, mas que a História quis que vivesse, embora vencido numa guerra cruel, como parte importante do povo que se formou nas terras do Brasil: o povo quilombola. O nosso povo-quilombo. Calabar foi apenas um fato histórico. E o fato histórico, por si só, não cria um povo. Calabar foi um mestiço que fugiu de seu povo. Se tinha sangue de negro, não queria ser negro. Se tinha sangue de índio, não queria ser índio. Calabar foi o mestiço que queria ser flamengo ou holandês. Mas Calabar não era um branco. Era um soldado mestiço, que foi garroteado pelo esquadrão italiano pendurado num esteio de casa. E depois foi feito em pedaços a mando de Matias de Albuquerque. Tudo o esquadrão italiano fez a mando de Matias de Albuquerque. Um daqueles Albuquerque terríbil, de que fala Camões no seu poema épico Os Lusíadas. E esse esquadrão italiano, ficou aqui servindo ao império luso- espanhol, e foram avós de todos nós, os brancos matadores de gente dos quilombos. Pois não é, que a História se escreve por linhas tortas? O pingo de sangue de negro que, segundo Gilberto Freyre, todo branco tem no Brasil é a nossa bela vingança quilombola, e que trazemos no sangue. Ainda bem que o Brasil criou o mulato. Ainda bem que nosso povo é mestiço. Se não é às vezes no sangue, às vezes é pelas idéias.
     
      O poeta Lêdo Ivo diz no seu Calabar:
 
Proclamar que alguém é herói
exige  muita cautela
se não a gente termina
caindo numa esparrela
ou envolvido num crime.
Também desejo saber
onde morou Calabar
por que rua ele  passou
quais os sinais que deixou
de sua passagem.

Ninguém sabe em que rua Calabar morou. Nem onde foi enterrado. Se foi. Nem o poeta em seu poema diz. Do poema de Lêdo Ivo o que sabemos são os sinais que Calabar deixou: ser um soldado das grandes geografias militares e ser um herói-trânsfuga que virou fantasma. Fantasma de um povo. Fantasma de um manifesto escrito três séculos e meio depois. Seus holandeses quase não falaram dele. Os homens de Espanha e Portugal falaram muito mal. Calabar, esse ser real, virou um fantasma da raiva de um rei, o rei de Espanha, na época também rei de Portugal. O roi-double de um império. Agora temos um fantasma-herói formado pela Companhia das Índias Ocidentais, e que dele não quis mais saber. Acham pouco que Alagoas é tão pequena para caber o fantasma-trânsfuga de Calabar? Calabar, como herói-fantasma, só cabe nas colinas do Porto Calvo. Mas lá Alagoas tem o herói-negro Zumbi dos Palmares. Com quem fica, pois, o cadáver-fantasma de Calabar? Fica sendo um desejo no Manifesto Sururu.

       E Jorge de Lima disse do sururu em sua novela O Anjo:

       Sururus existem em quase todas as lagoas do Brasil. Porém os desta lagoa (Mundaú), devido a circunstâncias especiais explicadas pelos naturalistas, como mistura de água do mar com águas dos rios que deságuam na lagoa, e outras causas, tornam-se como que degenerados, pequenos, gordinhos, gostosíssimos.

E escreve Édson Bezerra em seu Manifesto Sururu: espaços coletivos, maternidade e memória. Nascedouro e rotas de outros espaços geográficos. Espaços de uma memória possível.

       Pois o que busquei lendo e escrevendo sobre o Manifesto Sururu foi esses espaços de uma memória possível. Agora me deixe, gente, que vou para a beira da lagoa Mundaú tomar umas biritas e caldo de sururu, que Mestra Ilda do côco me espera para um banho nas águas da lagoa.

      Vocês sabem o que é gente-sururu?  É gente que traz nos olhos as imagens de todas as águas. Lição de mestre Édson Bezerra.

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Praia da Cruz das Almas onde os ventos entortam, o mar faz curva e os pontais de coqueiros entram mar a dentro apontando a África acolá, além, além, além do Mar
além da Porta do Não Volta Mais
homenagem a todos os negros alagoanos